O Primeiro Ministro, José Sócrates, julga-se, agora, um déspota iluminado.
O déspota iluminado é aquele que, por as suas luzes serem superiores às dos restantes mortais, tem o direito de governar sem que para isso se tenha de submeter a qualquer jurisdição. O déspota iluminado é necessariamente bom, decide e age de acordo com a Razão, logo não há lugar a enganos, erros ou injustiças.
Os cenários que se perfilam neste momento relativamente ao aborto são desfavoráveis aos planos do Primeiro Ministro. Daí que dê o dito por não dito e esteja preparado para na Assembleia da República decidir aquilo que há meses dizia dever ser decidido pelo voto directo dos cidadãos.
Independentemente da posição que cada um possa ter sobre o aborto, o que está em causa é um iluminado querer impor ao país a sua razão, sem se importar com o que o país possa pensar disso.
Uma matéria que já foi referendada não pode depois ser legislada em sentido contrário ao do voto da maioria dos eleitores. Tal seria uma usurpação do poder daqueles que constitucionalmente o detêm – o povo.
Não é aqui válido o argumento (se é que este é alguma vez válido) que numa democracia representativa os deputados à Assembleia têm legitimidade para decidir sobre o assunto aborto. Os que assim o julgarem estão a sobrestimar as suas insignificantes importâncias, pois esquecem que o povo quando vota escolhe o mal menor e não passa cheques em branco, principalmente a políticos da craveira dos nossos. Além disso, ninguém pode arrogar-se no direito de votar em nome de outrém sobre matérias de consciência (e já agora de soberania).
Igualmente não é válido o argumento de que se trata duma promessa eleitoral de que esta matéria ficaria resolvida neste ano, já que, depois de tantas promessas quebradas, não seria o atraso de um ano no cumprimento desta que afectaria irremediavelmente a (pouca) confiança neste governo. E também aqui se aplica o acima referido sobre o voto no mal menor e a não passagem de cheques em branco.
Aliás, a situação em que se encontra o Primeiro Ministro só resulta da boa Constituição que o seu partido (com outros) impuseram ao país, um instrumento verdadeiramente kafkiano quanto ao processo eleitoral.